(FOLHAPRESS) – No milésimo dia da Guerra da Ucrânia, Vladimir Putin abriu as cartas de seu jogo de ameaças nucleares após ser provocado pelo presidente americano Joe Biden. O russo ameaçou diretamente os EUA e seus aliados com armas atômicas caso Kiev use mísseis ocidentais contra seu território.
A autorização para o emprego de modelos com até 300 km de alcance, que podem atingir boa parte da Rússia europeia, foi dada por Biden segundo relatos não negados pela Casa Branca e amplamente comentados por seus aliados na Europa. Até aqui, o uso só podia ocorrer em áreas fronteiriças.
Putin já havia determinado a revisão da doutrina do emprego deste tipo de armas, mas o texto divulgado nesta terça (19) pelo Kremlin é bem mais amplo do que se esperava. Até aqui, valia um decreto de 2020 sobre o tema.
Nele, estava previsto o uso da bomba caso a Rússia fosse atacada, mesmo de forma convencional, de uma maneira que ameaçasse sua existência.
Agora, “A política básica estatal no campo da dissuasão nuclear” afirma que se Rússia poderá reagir nuclearmente caso o país ou a aliada Belarus enfrentem um ataque “com o uso de armas convencionais que criem uma ameaça crítica à sua soberania e/ou à sua integridade territorial”.
Mais importante, no contexto da Guerra da Ucrânia: “Agressão contra a Federação Russa e/ou seus aliados por um Estado não nuclear com a participação ou o apoio de um Estado nuclear é considerada um ataque conjunto”.
Completa o texto: “Agressão por qualquer Estado ou coalizão militar (bloco, união) contra a Federação Russa e/ou seus aliados é considerada uma agressão pela coalizão como um todo”.
Em resumo, se a Rússia assim quiser, sua doutrina agora permite que ela declare uma guerra nuclear contra EUA e seus aliados na Otan caso eles forneçam armas para um ataque sério por parte da Ucrânia.
Este é o ápice da espiral de ameaças nucleares de Putin no conflito, que foram feitas desde sua véspera e reafirmadas no discurso da invasão, quando ele falou em consequências inauditas na história a países que interviessem na guerra.
Ao longo da guerra, as ameaças foram e voltaram de diversas formas, sendo a mais comum a ideia de que Putin poderia empregar armas táticas, aquelas menos potentes e dedicadas a campos específicos de batalha, contra a Ucrânia.
O russo negou várias vezes isso, e agora baixou a barra não só para esse tipo de armamento, mas também para os estratégicos, as grandes ogivas que podem, numa guerra total, acabar com a vida na Terra como a conhecemos.
Putin comanda o maior arsenal nuclear do mundo, algo superior mas equivalente militarmente ao dos Estados Unidos. Ambas as antigas superpotências da primeira Guerra Fria controlam quase 90% das armas do tipo no planeta.
Essa nova crise dos mísseis, que lembra a de 1983 com a colocação de armas americanas de médio alcance na Europa, afetou mercados. Houve uma corrida de investidores a moedas fortes, como o dólar, o yen japonês e o franco suíço.
A tática russa deixou a Otan de fato fora do conflito, mas não de direito: Kiev só resistiu esses mil dias porque recebeu um influxo superior ao equivalente a R$ 1,2 trilhão em apoio do Ocidente, principalmente dos Estados Unidos no campo militar.
Mas a ajuda sempre veio de forma paulatina, após longas considerações. Sistemas antiaéreos, blindados, tanques, mísseis precisos e caças só vieram aos poucos e em quantidades usualmente modestas.
O mais recente tabu era a questão dos ataques contra a Rússia. Enfrentando enorme dificuldade em solo, com avanços constantes de Putin desde fevereiro, o governo de Volodimir Zelenski implorou quase diariamente para que mísseis como o americano ATACMS pudessem ser usados contra bases distantes no território russo.
Biden resistiu, temendo justamente a Terceira Guerra Mundial, mas acabou cedendo. Há um detalhe não desprezível, contudo: ao não falar oficialmente sobre o tema, o americano deixa a porta aberta para testar as águas da reação russa e eventualmente recuar, alegando que não decidiu nada.
Parece improvável, dado que seus aliados consideraram a decisão um fato consumado e se dividiram. A Alemanha de Olaf Scholz disse que não acompanharia a medida, enquanto França e Reino Unido, que já doaram mísseis de cruzeiro poderosos para Kiev, afirmaram que podem ir com os EUA.
Isso abre a porta até para que uma versão operada por Paris e Londres do seu principal modelo de cruzeiro, com alcance estendido até 560 km, possa ser dada a Zelenski. Com isso, ele pode ameaçar até Moscou, que hoje consegue derrubar todos os drones de fabricação ucraniana que se aproximam da capital.
O tempo, como em todos os aspectos nesses mil dias de guerra, corre contra Zelenski. A troca de ameaças pode durar até a posse de Donald Trump no lugar de Biden, em 20 de janeiro do ano que vem, quando é esperado que o republicano adote uma política mais dura em relação ao apoio a Kiev -com efeito, ele nada falou sobre a questão da autorização.
“A dissuasão nuclear visa assegurar que um adversário potencial entenda a inevitabilidade de retaliação no caso de uma agressão à Federação Russa e/ou seus aliados”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
ALIADOS SÃO NOVIDADE NO TEXTO
A questão dos aliados russos é uma novidade. Belarus virou um Estado com armas nucleares operadas pela Rússia desde o ano passado, no caso pequenos modelos táticos. Já a Coreia do Norte, ditadura obscura com quem Putin assinou um acordo de defesa mútua neste ano, tem estimadas 50 ogivas.
A rigor, levado ao pé da letra, um conflito da Coreia do Sul contra o Norte com apoio dos EUA também pode escalar para uma guerra total.
É dado como certo no Ocidente, e não negado em Moscou, que soldados de Kim Jong-un vão lutar ao lado de russos na Ucrânia, como parte do tratado.
Nesta terça, falando sobre os mil dias da guerra no Parlamento Europeu, Zelenski disse que a mão de obra disponível para Putin em Pyongyang poderá ser de até 100 mil homens –o que teria um impacto central na guerra, que é travada talvez por 600 mil russos contra 800 mil ucranianos hoje, números absolutamente imprecisos.
Até aqui, Kiev e Seul falavam em pouco mais de 10 mil soldados em treinamento. Eles seriam empregados justamente na ofensiva que se encaixa na definição russa de ameaça à soberania, a invasão de Zelenski de um pedaço pequeno da região meridional de Kursk. Lá, armas ocidentais são usadas, mas de forma restrita.
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