RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A eclosão da guerra na Faixa de Gaza no final do ano passado mudou o balanço de forças nas negociações do G20, o fórum multilateral que reúne as maiores economias desenvolvidas e emergentes do mundo e que neste ano é presidido pelo Brasil.
Países do chamado Sul Global –termo usado para se referir aos emergentes– passaram a usar a crise humanitária em Gaza para criticar o que consideram dois pesos e duas medidas na forma como os Estados Unidos e Europa tratam da Guerra da Ucrânia nos fóruns multilaterais.
Na visão desses países, incluindo o Brasil, o Ocidente adotou desde o início da invasão russa na Ucrânia uma postura seletiva. Promoveu uma ofensiva diplomática para isolar a Rússia em organizações internacionais por causa da invasão ordenada por Moscou na Ucrânia, por vezes travando o funcionamento do G20, ao mesmo tempo em que não deu importância semelhante a outros conflitos ao redor do globo.
Quando levantaram esse argumento nas duas edições anteriores do G20, diplomatas desses países emergentes dizem ter ouvido de seus colegas ocidentais que a grande violação do direito internacional da atualidade ocorre nos ataques ao território ucraniano ordenados por Vladimir Putin.
As dezenas de milhares de mortos em Gaza após a reação de Israel aos atentados terroristas do Hamas mudaram esse quadro, conforme ficou evidente na reunião de negociadores-chefes (chamados sherpas) no início de julho no Rio de Janeiro.
O encontro foi convocado pelo Brasil justamente para debater como o fórum deveria abordar as grandes crises geopolíticas da atualidade –principalmente na Ucrânia e em Gaza– nas diversas reuniões de ministros que se iniciam no final de julho e prosseguem até às vésperas da cúpula de presidentes em novembro.
Segundo relatos feitos à reportagem, diferentes delegações do Sul Global disseram na ocasião que não poderia haver seletividade no tratamento das crises internacionais.
Na linguagem diplomática, eles passaram o recado de que, se os países da Europa e os Estados Unidos insistirem em incluir nos documentos ministeriais do G20 uma condenação à invasão da Rússia contra a Ucrânia, como ocorre há dois anos, os textos também precisarão tratar de Gaza.
O conflito entre Israel e Palestina foi o principal exemplo, mas houve ainda apelos para que a situação no Sudão, por exemplo, fosse lembrada.
Veja como estão outros conflitos no mundo além de guerra Israel-Hamas “Em termos de gravidade, o que ocorre hoje na Palestina é muito pior [do que na Ucrânia]. O número de vítimas civis é muito pior”, diz Zane Dangor, negociador-chefe da África do Sul, país que assume a presidência do G20 em 2025.
Autoridades ligadas ao Hamas calculam que mais de 38 mil palestinos, segundo elas civis em sua maioria, tenham morrido em Gaza desde o início da ofensiva israelense na faixa –motivada pelos ataques de 7 de outubro, que deixaram cerca de 2.500 mortos em Israel. Tel Aviv ainda confirmou a morte de outras 31 do total de 126 pessoas sequestradas pelo Hamas perderam suas vidas em cativeiro no território palestino.
Já os números da Guerra da Ucrânia não são divulgados, mas estimativas de autoridades americanas indicavam que, até o final do ano passado, 120 mil tropas russas e 70 mil ucranianas tinham morrido durante os confrontos. Somam-se a elas pelo menos 10 mil civis ucranianos mortos em decorrência dos enfrentamentos, de acordo com a ONU.
“Não podemos adotar dois pesos e duas medidas. Todos nós defendemos a libertação dos reféns, criticamos o que ocorreu em 7 de outubro [data do mega-ataque do Hamas], mas não há o mesmo nível de crítica do Ocidente em relação às ações de Israel.”
O G20 tem entre seus membros países com fortes laços com a causa palestina, como Arábia Saudita, Turquia e a própria África do Sul. O governo Lula (PT) também é crítico das ações militares israelenses.
Do outro lado, tratar de Gaza gera incômodo e ainda causa certa divisão no bloco dos países mais industrializados. Há membros que adotam uma defesa firme das ações israelenses, mas outros têm aumentado críticas ao que veem como excessos do governo de Binyamin Netanyahu.
Uma das consequências dessa nova correlação de forças no G20 foi a diminuição da pressão dos EUA e Europa para que haja uma condenação contra a invasão da Rússia na Ucrânia no âmbito do G20, disseram à reportagem pessoas com conhecimento das negociações.
De acordo com elas, a pressão foi perceptivelmente menor no último encontro no Rio do que na reunião anterior de sherpas, realizada em dezembro em Brasília.
Gaza não é o único componente novo no atual ciclo do G20, disseram pessoas que acompanham o funcionamento da organização.
De acordo com elas, países do Ocidente têm adotado uma postura mais flexível em relação à Ucrânia também para evitar a paralisia do fórum multilateral.
Segundo essa avaliação, negociações sobre cooperação internacional em áreas importantes como economia, saúde e meio ambiente acabaram nos últimos anos contaminadas pelo impasse em torno da Ucrânia –cenário que não interessa a nenhum dos integrantes do bloco.
A presidência brasileira percebeu que poderia existir maior flexibilidade neste ano ao acompanhar reuniões recentes da Apec (Fórum Econômico da Ásia e do Pacífico). O agrupamento reúne uma espécie de amostra da atual polarização internacional: tem membros do G7, como EUA e Japão, mas também do Brics, como Rússia e China.
Em duas reuniões temáticas da Apec realizadas em maio, o Peru, que tem a presidência rotativa do grupo, propôs que a declaração final dos ministros não tivesse nenhuma referência a conflitos geopolíticos.
Em troca, Lima divulgou um documento separado, sob sua responsabilidade, no qual declara que durante a reunião alguns participantes “expressaram suas visões sobre Rússia e Ucrânia e a situação em Gaza”.
O Brasil quer usar essa fórmula de inspiração e trabalha em um acordo para que nem Ucrânia nem Gaza sejam mencionadas nos documentos oficiais dos encontros ministeriais do G20.
A avaliação é de que esses assuntos serão novamente discutidos na cúpula de líderes no Rio, mas a perspectiva de que o G20 volte a publicar declarações oficiais ao menos no nível ministerial é visto como um sinal positivo por diplomatas brasileiros.
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