(FOLHAPRESS) – A morte de sete funcionários da organização humanitária World Central Kitchen (WCK) durante um bombardeio aéreo israelense na Faixa de Gaza no fim de março colocou em evidência os riscos enfrentados por aqueles que atuam com apoio a civis em zonas de conflito. A guerra entre Israel e o Hamas já deixou um saldo recorde de mortos entre trabalhadores que atuam com ajuda humanitária.
No total, foram 203 vítimas nos seis meses desde o 7 de Outubro, das quais 197 são palestinas e seis são estrangeiras –justamente os da WCK. Os dados são do Aid Worker Security Database (AWSD), uma compilação global de registros desde 1997 de incidentes de segurança que afetam trabalhadores humanitários.
Desde o início de 2023, 63% de todas as mortes de trabalhadores humanitários no mundo ocorreram nos territórios palestinos. Antes da guerra em Gaza, o ano com mais mortes havia sido 2013, quando 159 trabalhadores morreram em diferentes conflitos, especialmente na Nigéria, no Paquistão, no Afeganistão, na Somália e no Iêmen.
Somente nos primeiros três meses da guerra Israel-Hamas, 161 humanitários morreram na Faixa de Gaza.
“Trabalhar com ajuda humanitária é a profissão mais perigosa do mundo”, diz a pesquisadora Abby Stoddard, sócia da consultoria Humanitarian Outcomes e coordenadora do AWSD.
Segundo ela, além da Faixa de Gaza, os outros lugares mais arriscados para esses profissionais são o Sudão e o Sudão do Sul, mas a violência desses países está sendo ofuscada pelo conflito israelo-palestino. A série histórica do AWSD mostra que, desde 1997, o total de vítimas humanitárias nos dois países africanos foi de 426. Desde o ano passado, entretanto, as 203 mortes nos territórios palestinos foram mais que o triplo das 60 registradas nos dois Sudões.
RISCO EM ALTA
Para Sarah Schiffling, especialista em logística humanitária da Hanken School of Economics, na Finlândia, o total de mortes na guerra em Gaza revela “uma situação muito extrema”.
“Normalmente não vemos tantas mortes de trabalhadores humanitários. É o maior número de vítimas deste tipo que já vimos em guerras modernas, especialmente em tão pouco tempo”, disse à Folha de S.Paulo.
E o cenário, segundo Stoddard, do ASWD, é de agravamento. “Nossos dados mostram que a atuação de trabalhadores humanitários está se tornando mais perigosa. Percebe-se claramente uma tendência de aumento do número de mortes ao longo do tempo”, afirma.
Para a pesquisadora, uma explicação para o aumento do número de mortes é o fato de as guerras estarem acontecendo mais frequentemente em ambientes urbanos e com alta densidade populacional, como a Faixa de Gaza e a Ucrânia, por exemplo. “Isso aumenta muito os riscos e cria mais casos de dano colateral”, diz.
Elizabeth Stites, especialista em conflito, violência e humanitarismo da Universidade Tufts, nos EUA, concorda com a avaliação. “Há uma mudança na forma como as guerras estão acontecendo. Desde os anos 1990, os conflitos se tornaram mais urbanos. Não há mais tantas linhas de frente de combate [no sentido tradicional], e a violência acontece dentro das cidades, ao lado de civis e onde muitos desses trabalhadores humanitários atuam ou até vivem. Isso pode levar a um aumento dos casos envolvendo vítimas que atuam dessa forma” diz.
Stites afirma, entretanto, que há hoje uma eficiência maior em monitorar esses casos, bem como uma exposição midiática maior. Além disso, a atuação de ONGs desse tipo cresceu muito nas últimas décadas, o que aumentou o número de trabalhadores do setor e, consequentemente, o de vítimas.
AGRESSÕES
As ONGs que atuam no território palestino alegam que o ataque à WCK ilustra agressões sistemáticas de Israel contra grupos que oferecem apoio humanitário. Mesmo que haja um protocolo de segurança para esses grupos, eles apontam a ocorrência de múltiplos incidentes.
“Os voluntários se sentem em perigo em suas operações em Gaza”, segundo Benjamin Gaudin, responsável pelas operações da ONG Première Urgence. “O nível de perigo que enfrentamos em Gaza é inédito”, afirmou Claire Magone, porta-voz da Médicos Sem Fronteiras (MSF) à agência de notícias AFP.
Israel assumiu a autoria “não intencional” do ataque à WCK, pediu desculpas, destituiu um major e um coronel e alegou ter encontrado sérios erros e violações de procedimento.
Para Schiffling, a visibilidade do caso e o fato de que houve mortes de cidadãos estrangeiros estão levando a um discurso em defesa de se aprimorar o sistema e garantir que isso não aconteça novamente. “Um passo importante é garantir que a informação não fique apenas no topo da hierarquia e nos quartéis, mas que cheguem também para os soldados e para os operadores de drones que tomam a ação nos ataques”, pondera.
Indo além do caso que levou à morte de estrangeiros do Ocidente, especialistas apontam que o risco em Gaza pode ser ampliado pela postura de Israel em relação à UNRWA, a agência da ONU para refugiados palestinos –Tel Aviv a acusa de ter agentes duplos pró-Hamas.
“A UNRWA não é um braço do Hamas, eles são os principais nomes da ajuda humanitária em Gaza”, afirma Stoddard. “Fazem mais do que qualquer outra agência. E são as principais vítimas da violência contra grupos humanitários.”
Desde o início da guerra, 168 dos 203 trabalhadores humanitários mortos nos territórios palestinos eram de agências ligadas à ONU. A maioria da UNRWA.
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